terça-feira, julho 31, 2012

Teatro Anatómico - Passeio - Primeira Vez

[para estes primeiros oito, «logísticos» dias, só vieram dois livros; o de Faciolince, afinal, já tinha sido lido;  p. 159 da releitura]

      […] não muito tempo depois deste espisódio, talvez um ano ou dois,  o meu pai resolveu que estava na hora de eu conhecer um morto. A ocasião apresentou-se numa madrugadada em que o mandaram chamar para ir à morgue de Medellín reconhecer John Gómez, um rapaz com um atraso mental que tinha morrido atropelado na auto-estrada, o filho único de Octavia, tia do meu pai. Antes de sair, o meu pai resolveu acordar-me e disse-me:
        - Vamos ao anfiteatro, acho que está na hora de conheceres um morto.
        Vesti-me muito feliz, , como se fosse para um programa festivo, porque há muito que tinha pedido que me introduzissem nesse mundo do que já não existe.Estávamos sozinhos e, assim que entrámos na morgue de El Pedregal, [...] não gostei nada do que vi. A sala estava cheia de cadáveres, mas eu não quis fixar  a vista em nenhum deles, embora quase todos estivessem cobertos popr lençóis. Cheirava a sangue e a talho e a form.ol e a podre. O meu pai levou-me pela mão até onde o médico legista lhe indicou que estava o corpo do rapaz que podia ser o John. E era mesmo o  John, e então o médico propôs ao meu pai que presenciasse a autópsia. Aí, as minhas recordações já não são tão nítidas. Vejo uma serra eléctrica  a começar a serrar o crânio, vejo intestinos azuis a serem depositados num balde, vejo uma tíbia partida a sair por um dos lados da barriga da perna, rasgando a carne. Sinto um profundo cheiro de sangue dissolvido com formol, um misto de carne de bovino com laboratório de química. Depois, como o meu pai percebeu que o espectáculo da autópsia era demasiaso forte para mim, decidiu levar-me a dar um passeio por entre os outros mortos. Na tarde anterior tinha caído uma avioneta nos arredores de Medellín e havia vários corpos carbonizados e desfeitos para os quais não quis olhar durante muito tempo, porque me davam vómitos. Mas talvez aquele de que me lembro seja o cadáver de uma rapariga muito nova completamente nua, de uma palidez transparente, com uma ferida azul, de facada, no abdómen. Tinha uma pequena etiqueta no dedo grande do pé que dizia que tinha sido apunhalada num bar de Guayaquil, e o meu pai disse: «Devia ser puta, coitada.» Era a primeira vez que eu via uma mulher (sem ser uma irmã) nua; a primeira vez que via uma puta; a primeira vez que via um  morto. E foi aí que desmaiei. Depois, vejo-me fora da morgue, a tomar um enjoativo medicamento à força, para me reanimar, pálido, mudo, a suar.   
          Não consegui dormir durante várias noites. Tinha pesadelos [... ]  

Héctor Abad Faciolince. Somos o esquecimento que seremos. (2006). Lisboa, Quetzal, 2009, pp. 159 - 160

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