quinta-feira, setembro 27, 2012

Lusíadas - O miúdo que o ia continuar

de: O míudo que pregava pregos numa tábua, de Manuel Alegre, de 2010 -

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    O miúdo que conta as sílabas pelos dedos não se contenta em contar as dos outros, às duas por três começa a contá-las para si mesmo. E não está com mais aquelas, chama a irmã e confidencia-lhe: Vou continuar Os Lusíadas. Ela ficou um tanto assarapantada, mas leva a sério, como, aliás, tudo o que vem do irmão. Mas não consegue conter-se. Conta a uma amiga, esta a outra, que por sua vez conta a outra, a notícia vai dando a volta, chega ao liceu do irmão e à rua onde moram, os vizinhos comentam, entre eles um escultor célebre, mestre Barata Feyo, o único, diga-se de passagem, que não se escandaliza, acha natural, ao ponto de apresentar o miúdo a dois colegas professores de Belas Artes:
    - É este o homem que está a continuar Os Lusíadas.
   De modo que o miúdo que pregava pregos numa tábua não teve outro remédio senão o de tentar corresponder à confiança de tão ilustre artista. E meteu mãos à obra. Mas ainda hoje não sabe se conseguiu. E o escultor já cá não está para confirmar se sim ou não. Só a irmã, sem ironia, às vezes lhe pergunta: Ainda estás a continuar Os Lusíadas? Apesar da solenidade com que o pai lhes tinha explicado que ninguém poderia nunca continuar Os Lusíadas e que era quase um sacrilégio pensar que sim. Nem um nem outro ficaram convencidos. O miúdo que gostava de armar ao pingarelho acabou mesmo por dizer à irmã:
    - O pai está enganado, não há nenhum poeta que não tenha querido continuar Os Lusíadas.

Manuel Alegre. O miúdo que pregava pregos numa tábua. Lx. D. Quixote, 2010, pp. 39-40

quinta-feira, setembro 13, 2012

Londres (de Alberto de Lacerda)

[re - arrumada, trazida de «Peribiblio»]

JL, n.º 1067, 24-08-2011 a 06-09-2011, página 32 (final)

Alberto de Lacerda (1928-2007)
[...]
3 de julho de 1985 - Yévre-le-Chatel
Arpad, criança, ouve na escola que determinado ilustre poeta húngaro tinha morrido pela pátria. Arpad pergunta à mãe: «Não se pode viver pela pátria?».

31 de Maio de 1986 - Lisboa
Feira do Livro. Encontro Herberto Helder no Mourisca da Fontes Pereira de Melo. (...) Fomos jantar à Cervejaria Trindade, de que eu gosto muito. Fizemos o nosso gossip, mas também se falou muito de poesia. Ele tem grande entusiasmo por muitos poetas. Recitámos à desgarrada Sá-Carneiro, Pessanha e outros.

3 de julho de 1986 - Londres
Ontem, vi Paula (Rego) pintar pela primeira vez: hesitações, gestos deliberados, por vezes quase agressivos, gestos hesitantes, pausas breves, às vezes, entre uma pincelada e outra. Pinta ajoelhada no chão. Quatro novas telas de uma maturidade absoluta.
A Ericeira aparece numa delas.

3 de julho de 1986 - Londres
A minha paixão física por Londres; de uma intensidade inusitada. São onze e meia da noite, e de repente, dá-me um desejo de ir por essas ruas fora, de percorrer certos recantos queridos, o Embankment em Chelsea, e entre Westminster e a Ponte de Waterloo, ruazinhas à volta de Victoria, e todas as sinuosidades de Chelsea, que as conheço de cor. Que estranho, tudo isto. E sinto-me feliz por amar Londres tão perdidamente.
[...]

sábado, setembro 08, 2012

Tolentino Mendonça

[«deslocado» de JOC]

[J. T. M. é amigo de A. M. F. - padrinho de J., o amigo de (quase toda)uma Vida de D. - que não o  conhece pessoalmente;
da obra poética, algo tem lido - indo «agorinha» G. à Estante da S., encontra oito livros]

na página 36 - última - secção «Diário», do JL, n.º 1076, de 28 de Dezembro -
J. T. M. cruza registos autobiográficos com ensaísticos - «um Diário (diferente)» regista a 1.ª página do quinzenário
- algumas dessas Entradas - não datadas:

[...] ***
Nasci numa ilha, a Madeira. A maternidade onde nasci foi derrubada, nos anos 90, quando se fez a ampliação da pista do aeroporto. Mas sei que nasci ali. Porque recordo minha mãe, ocupada entre as flores. E meu pai, que me trazia de presente, das longas viagens marítimas, um pássaro. Porque me recordo de ter lido, numa falésia, não longe de minha casa, um livro de Herberto Helder.

[...] ***
Talvez todos os livros que lemos e se tornaram inseparáveis , todo o tempo fascinado que dedicámos a uma imagem, os motivos inexplicáveis que nos fazem escolher determinada música, talvez tudo isso seja apenas a preparação que nos é requerida para olhar um rosto. Transportamos frases, fragmentos, vestígios: não sabemos dizer bem porquê, até que de repente, isso que eram palavras ou imagens ou uma coisa tão ténue que nem se pode descrever, assoma como forma, mais sensível ou mais intensa, de escutar aquilo que habita um rosto.

[...] ***
Havia uma noite, na minha adolescência, em que se acendiam fogos pelas encostas. Lembro-me de um grito que descia pelas levadas, aos tropeções, e entrava, de noite, com os rapazes, pelo mar dentro. Esse grito continha, e isso poderá parecer tão estranho ao mundo moderno, o nome da terra.

[...]***
Cheguei à poesia pela tradição oral e julgo que essa impureza sempre me contaminará. Há muito tempo ouvi, de uma mulher pobre que lavava o chão da Igreja, na terra da minha infância, o primeiro poema. Que ela me disse e eu conservei como uma história, não como um poema. Foram precisos anos e anos para chegar, de novo a ele. Era uma página da Bíblia, do livro do Cântico dos Cânticos. António José Forte escreveu: há "gente que nunca escreveu uma linha que fez mais pela palavra que toda uma geração de escritores". Sei que isso é verdade.

[...]***
Antes dos vinte anos escrevi, sem especial premeditação, o primeiro poema. Chamei-lhe «A infância de Herberto Helder»
[...]
 

CARTA DE MONTREAL (2.ª via)

[NOTA: o que se segue foi inserido no «JOC», em 31 de Outubro - é aqui reinserido, com mais um ou outro Corte;
neste momento, M. G. já regressou - o «Tempo engana-se ou não nas Casas onde mora?» - L. Represas]

[M. G. foi para Montreal.
Para G., a Menina é M. A. P., pelo Avô]

Alguns Recortes da sua última Missiva
- devidamente autorizados pela própria - e com acentos «recolocados»
- visão desassombrada - só possível com o Tempo e, ou, a Distância, tal como «prega Frei G.», que também serve para «problematizar» um termo da «Moda»: Globalização

SEGUNDA-FEIRA, 17 DE OUTUBRO DE 2011
escola
      O Canadá, ou melhor, o Quebec, não é aquele sítio onde tudo acontece bem, no tempo certo e em que todos os aspectos da sociedade coabitam em harmonia; aliás, foi preciso eu afastar-me de Portugal, melhor dizendo, de Lisboa e da querida A. A., para começar a perceber a sorte que eu sempre tive e fui tendo [...].
    Aqui, o ano [...] equivalente em idade ao meu 12.º chama-se «5ieme secondaire»; depois desse último ano, os estudantes vão para o Cgep - college - que é uma espécie de preparação antes da universidade, já na área escolhida, e que dura dois anos, e só depois entram para os verdadeiros cursos.
      As disciplinas do 5ieme secondaire são pobres em conteúdo e muito fáceis; artes plásticas não presta e é a opção que toda a gente escolhe para não ter química e física, ou seja, são horas para passar o tempo e fazer uns gatafunhos de imaginação (como se fosse algo muito sério e interessante, o professor fala da matéria como uma grande aprendizagem que ali estamos a ter....; enfim).
      Tenho muitas saudades de desenhar, ter aulas de desenho com tempo contado, com metas, até regras, mas regras que façam sentido - não como as que há aqui. [...] . Sinto que estou a «emburrecer»; ou melhor, que não estou a ser estimulada e que não me consigo auto-estimular tanto como quereria. "Tem calma, isso há-de vir", dizem-me todos os daí, [...]; mas eu gosto muito de aprender, [...]
        
[...] Aqui, os estudantes do ensino obrigatório são tratados como crianças, todas iguais, que não sabem decidir por si e que por isso têm é que seguir as regras e calar-se. Não há casacos sem ser do uniforme [...]; não se come fora da cantina; não se pode ir aos cacifos, se se chegar atrasado, ou ir buscar algo essencial durante as aulas; [...]
    Como é que é suposto que estes estudantes acabem o secundário sem opinião? Por que é que, para variar, não estou no «mesmo comprimento de onda» da maioria das pessoas que tenho à volta, o dia inteiro? [...]

     Que não se deixe de fazer crescer os alunos A. A.; saem de lá com alguma coisa que realmente interessa na cabeça. [...]
[alguns sublinhados acrescentados]

 

sexta-feira, setembro 07, 2012

«não somos o que temos a certeza de sermos»

[Transplantado do «Alpabiblio»]

As biografias
António Lobo Antunes,
16:30 Quinta feira, 10 de Mai de 2012, Visão

[ler o texto completo no Endereço da Visão]

        Gosto muito de ler biografias mesmo sabendo que não biografam nada. Contam factos, acumulam testemunhos, relatam acontecimentos mas é tudo por fora, e saio delas sem conhecer um pito da pessoa a que o livro se refere. Sem conhecer um pito do que a pessoa é. Fico ao par de uma casca, porque o acesso ao miolo é impossível e o conhecimento da intimidade nos está vedado. Queria uma vida e dão-me historinhas. Porém, como gosto de historinhas, divertem-me. Não se consegue ter acesso ao interior de um homem ou de uma mulher através de episódios inevitavelmente exteriores. O que eles sentiram permanece inviolado. Sabemos dos seixos ou das algas na praia, não sabemos do mar. Extractos de cartas, de confissões, de confidências e a certeza que outras coisas por baixo, que as coisas importantes por baixo, intactas. Scott Fitzgerald sustentava não se poder contar a vida de um escritor porque ele é muita gente. Para mim não é isso, é a incapacidade de aceder ao fundo. Ficamos na espuma ou, na melhor das hipóteses, um bocadinho abaixo da espuma.
[...]
E se, por hipótese, eu publicasse a biografia de António Lobo Antunes não publicava a biografia de António Lobo Antunes nenhum, publicava a minha noção dele, dado que aquilo que somos, para nós mesmos, não passa da fantasia do que somos. A vida é um jogo de espectros, ainda que de espectros sinceros. E o que é a sinceridade? Mentir melhor, genuinamente convencidos que não mentimos? Nada é o que parece, afirmava Cortazar e, inevitavelmente, não somos o que temos a certeza de sermos.
[...]
[...] E a nossa vida, deixemo-nos de tretas, é feita de acontecimentos minúsculos, cujo carácter microscópico me encanta. Os breves surtos de grandeza da nossa existência são tão breves! Merecemos morrer porque a nossa dimensão é quase nula, desaparecermos, como as minhocas, no interior da terra. Não há grandes homens: há actos que, às vezes, são grandes e, acabados esses actos, regressamos de imediato, ao nosso curtíssimo tamanho, bichos da terra tão pequenos, ó irmão Luís.
[...]                                   [sublinhados acrescentados]

Ler mais: http://visao.sapo.pt/as-biografias=f663502#ixzz1ufd91CZ1