segunda-feira, agosto 17, 2015

Retratos sucessivos - Teolinda Gersão

[em curso de leitura, na reimpressão de 2014, este livro de T. G., de 84;]
Recortes:
         [...]
         Sábado, cinco.
        Iria pintando em cada dia o seu retrato, decidiu, deixaria retratos sucessivos no tempo, multiplicando-se para aumentar as suas hipóteses de escapar à morte. Porque a morte levaria muito mais tempo a apagar todos esses eus do que só um.
[…]
        Segunda, treze.
        Olhou-se ao espelho, para ver como ficaria no retrato. Mas a imagem que viu não lhe pareceu exacta. Procurou debalde em todos os espelhos, no (…) oval do quarto, no (…) escuro da entrada, […] Mas a imagem pareceu-lhe cada vez mais inexacta.
[…]
         Domingo, doze.
         Procurou nas fotografias, mas todas tinham desbotado, estavam pouco nítidas e não se reconhecia em nenhuma, […]
Segunda, trinta e um.
Então foi ao fotógrafo, tirar o retrato.
No estúdio havia guarda-chuvas de seda branca, coando uma luz homogénea, clara, subindo e descendo diante do seu rosto, ela estava sentada debaixo da luz como um objeto em que ele tocava, compondo-o, mudando, inventando.
         (o tempo parado, o instante preso, ficarás assim pela eternidade adiante — as fotografias eram uma imagem da morte, o seu rosto sem vida, uma máscara de cera, fixa, fria)
          não havia exactidão e tudo era manipulável, viu enquanto ele levantava e baixava os guarda-chuvas luminosos, a máquina deveria ser imparcial e exacta, mas de algum modo ele fazia-a mentir, e também ela própria era um objecto, assim exposta, à mercê da luz e da objectiva.
          De tão manipulada e de tão morta, também não se reconheceu nesse retrato. […]

Teolinda Gersão, Os guarda-chuvas cintilantes — Cadernos I – diário, 3.ª ed., Sextante, 2014, pp. 28-30
 
Outros REcortes: AQUI e AQUI

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