quarta-feira, agosto 24, 2016

«... para além da curva da estrada (... como um ruído de chocalhos»)


Com  verso de Caeiro, evocação de Infância, de J. Monginho, no Alentejo [num «dossiê» do J. L., intitulado «Memórias de outros verões»]

Recorte inicial:

“O dia começava ao pôr-do-sol, com os chocalhos das ovelhas. Escuta, lá soam eles, dizia a tia Chica, cansada de pressentir todos os sons da aldeia; feliz por, durante esses dias, os ouvir através dos ouvidos curiosos da sobrinha.
A gaiata saltava da minúscula cadeira encarnada e corria a assomar ao portão, nas traseiras da Casa. Se fosse hoje, pensa ela, teria fotografado cada segundo dessa espera impaciente: a cauda da estrada, lá em cima, iluminada como a de um cometa pachorrento, um cometa alentejano, terreno, seguindo o aroma do pão; depois o novelo, tão distante que parecia impossível desdobar-se até chegar, fio por fio, balido por balido, aos olhos esbugalhados da gaiata. O canito à frente, treque-treque, língua de fora, esbaforido. Atrás o pastor, quase tão alto como o depósito da água, que, ao passar por nós, levava os dedos ao boné e ciciava boa tarde. Boa tarde, ti Lucas.
Já não via desaparecer o rebanho na outra ponta da estrada, a que dava para o Desvio, assim chamavam os aldenovenses ao cruzamento que os levaria a Beja, a Espanha ou a Lisboa. Os ouvidos já escutavam outra música, a que vinha da venda mesmo em frente, as vozes dos homens amparadas umas às outras, um queixume plural, mudado em cante. Às vezes falo comigo e digo triste sorte que é a minha. A mãe dava-lhe as moedas e mandava-a à venda por uma laranjada. Lá dentro fazia escuro, mal se distinguiam os homens por baixo dos chapéus, quanto mais as gargantas. De onde sairia o cante? Ali se demorava, a ver se descobria, esfregando as mãos na garrafa fresquinha. [...]


«Como um ruído de chocalhos para além da curva da estrada», Julieta Monginho, JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1197, 17–08–2016, p. 8

segunda-feira, agosto 22, 2016

Helen - a «Mulher-Açor»

[segunda, pelas 11 e 20...; ao balcão do F., da «histórica» Dona I...; Recorte que estava a ser lido, quando tocou o CEL, para a General Z, com a Dona M. D., de Évora, ...]

A minha visão turva-se. Transportamos as vidas que imaginamos tal como transportamos as vidas que temos e, por vezes, fazemos o cômputo de todas as vidas que perdemos. O almoço de verão recua. Não consigo recuperá-lo. Há nevoeiro que se infiltra, vindo do campo de râguebi que Prideaux percorria. Lufadas lentas e brancas. Há um silêncio na minha cabeça, mas vai-se tornando mais sonoro.  «Não sou uma espia», disse eu ao meu pai. «Sou historiadora.» Mas ao observar toda a gente à volta da mesa, os seus rostos fascinados com o meu açor, parece-me que já nem isso sou. Sou o Bobo, penso, entorpecida. Era uma investigadora, uma académica competente. Agora sou feita de retalhos. Já não sou a Helen. Sou a mulher-açor. A ave estraçalha a perna do coelho. Vespas descrevem círculos à volta dela, semelhantes a electrões. Pousam-lhe nos pés, no nariz, à procura dos restos de carne de coelho que vão levar para o seu ninho de papel em qualquer sótão de Cambridge das imediações. Mabel enxota-as com o bico e observa os seus abdómenes às listras amarelas e pretas a girarem no ar antes de se endireitarem e de voarem de novo direitas a ela. Este almoço de verão tem um ar profundamente irreal. Sombras de damasco e prata, uma fotogravura num álbum, qualquer coisa de Agatha Christie, de Evelyn Waugh, vinda de outra época. Mas as vespas são reais. Elas estão aqui, pertencem ao presente. O mesmo se pode dizer do açor e do sol no centro deles. E eu? Não sei. Sinto-me oca e desprotegida, um ninho de vespas etéreo, vazio, uma coisa feita de papel machê depois de a a geada ter acabado com toda a vida no seu interior.
[itálico no texto; negrito acrescentado]


Helen Macdonald, A de Açor, 2015, «Lua de Papel», pp. 152-153

domingo, agosto 21, 2016

A Educação da Ave

[não será dos temas que mais interesse a V., mas o nível da AutoFicção justifica bem a Leitura - iniciada antes da Estadia de Mat., lentamente retomada desde sexta; atingida a p. 127]

Recorte:
Depois de uma chuva intensa, o ar está luminoso e as multidões da hora de fecho das lojas já desapareceram. Nesta segunda expedição, a Mabel agarra a luva com mais força do que nunca. Está tensa. Parece mais pequena e sinto-a mais pesada, como se fosse o medo a torná-la assim, como se lhe tivessem vertido estanho para dentro, para os ossos ocos e longos. As marcas semelhantes a gotas da chuva na sua fronte coberta de penas cerradas correm juntas formando linhas compridas à volta de uma boca descaída. Debica pedacinhos de comida, mas principalmente olha à sua volta, tensa e reservada. Segue bicicletas om os olhos. Curva-se, pronta a saltar, quando as pessoas se aproximam de mais. As crianças assustam-na. Fica inquieta com os cães. Com os cães grandes, quero eu dizer. Os cães pequenos fascinam-na por outras razões.
Decorridos dez minutos de apreensão, o açor decide que nenhuma destas coisas o vai comer ou espancar até à morte. Sacode as penas e começa a comer. Automóveis e autocarros passam a chocalhar, libertando fumos de escape e, quando a comida desaparece, ele fica a contemplar o estranho mundo que o rodeia. E eu também. Passei tanto tempo sozinha com ele, que vejo a cidade através dos seus olhos. Ele observa uma mulher na relva, a atirar uma bola ao cão, e u fico a ver também, tão perplexa como a ave com o que ela está a fazer. [...] O que salta à vista de uma ave de presa na cidade não é o que salta à vista de um homem. As coisas que vê não lhe parecem interessantes. São irrelevantes. Até que se ouve um bater de asas. Erguemos ambos os olhos. É um pombo, um pombo-torquaz, a descer para pousar numa limeira por cima de nós. O tempo abranda o seu ritmo. O ar torna-se mais denso e ave transforma-se. É como se todos os seus sistemas defensivos ficassem de súbito envolvidos. Miras vermelhas. Ela põe-se em bicos de pés e estica o pescoço. Isto. Esta trajetória de voo. Esta coisa, pensa ela. Isto é fascinante. Alguma parte do jovem cérebro do açor descobriu qualquer coisa, e tudo gira em torno da morte.


Helen Macdonald, A de Açor, 2015, «Lua de Papel», pp. 120-121

quarta-feira, agosto 17, 2016

«APAGA-APAGA» - Dulce M. Cardoso

Entrevistada por F. Câncio, no DN de hoje

Recorte (legenda da Fot.):

Ao escrever o segundo romance, Os Meus Sentimentos, Dulce Maria Cardoso perdeu-o devido a um vírus informático. Reescreveu-o de memória e descobriu o seu método criativo, “que é o mais maluco”: escreve e quando chega ao fim apaga tudo e reescreve. “É horrível, mas já tentei não o fazer e não fica bem”

segunda-feira, agosto 15, 2016

A (Insustentável) Leveza das Pedras - Lobo Antunes

No tempo Grande do Rugido, há Tempo para ler a Visão:

O meu trabalho é escrever até que as pedras se tornem mais leves que a água. Não são romances o que faço, não conto histórias, não pretendo entreter, nem ser divertido, nem ser interessante,  só quero que as pedras se tornem mais leves do que a água. Em pequeno, à noite, no verão, de luz apagada, ouvia o mar na cama,  a mesma onda sempre, ainda hoje a mesma onda a trazer a praia e a levar a praia, e, ao levar a praia, eu suspenso do nada sem tocar nos lençóis. (...)
(...) Senti-me feliz na Transilvânia, nas montanhas. As pedras tinham menos peso já, por essa altura, mas ainda necessitava de muito tempo porque as palavras demoram a impregnar as coisas, entram devagarinho, a ideia da minha morte começa a parecer-se com a minha morte. Às vezes o meu corpo gela, às vezes uma pedra levanta-se. Faltam muitas ainda. Quando todas forem mais leves do que a água então sim, podem ler-me, escrevi o que era preciso escrever(...)

António Lobo Antunes, «Até que as pedras se tornem mais leves que a água»,  Visão, n.º 1223, 11-08-2016, pp. 6-7