domingo, agosto 27, 2017

Ao Espelho do Espelho de V. W.... - («Ana de Amsterdam»)

[foi lido, «descontinuamente», no Verão de 2015, ano da publicação desta seleção de ENT de «Ana de Amsterdam»; (re)leitura terminada ontem]

Recorte:

2014-10-19
[…] Caminhei lentamente até à livraria, passei pela pequena janela do canário amarelo. Pedi um chá de menta ao livreiro (…) e levei para a mesa o novo livro do […] Li durante quinze minutos, apenas o tempo necessário para o chá arrefecer. À saída perguntei ao livreiro se tinham O quarto de Jacob. Ando a ler, já há algum tempo, o diário de V. W. Com calma e vagar, […] antecipo que sentirei um certo vazio quando acabar de o ler. Decidi ir lendo os romances à medida que Virginia Woolf os vai escrevendo. Estou a ler as entradas de 1922, ano em que Virginia terminou O quarto de Jacob e, no seu espírito, como fiapos de luz, começam a delinear-se os contornos de Mrs Dalloway. É muito interessante descobrir a extraordinária crítica literária que esta mulher foi. Sobre o Ulisses, escreveu: «[…]» Mas, confesso, o que mais gosto é de a acompanhar no seu dia-a-dia. No dia 7 de Julho, Virginia arrancou três dentes e, no dia 3 de Agosto, passeando pelos campos de Richmond, encontrou uma colónia de cogumelos.


Ana Cássia Rebelo, Ana de Amesterdam, Quetzal, 2015, pp. 214, 5

segunda-feira, agosto 21, 2017

«gato num muro com mulher a vê-lo» - Ivone M. da S.

[leitura concluída ontem, na ESP. do R. ;  dois outros recortes – AQUI e ALI]

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Ontem enquanto atravessava o peristilo a caminho do pavilhão B vi um gato preto sobre o murete que suporta o gradeamento. Era grande e longilíneo  e passeava com a elegância indiferente dos seres que se sabem muito belos. Esticava cada movimento como que a exibir-se numa coreografia vaidosa. Eu tinha acabado de sair da sala dos professores onde o barulho era tanto que repetia de mim para mim um dia fujo, um dia fujo. Embora o tenha aprendido a disfarçar o meu desespero deve continuar tão visível que há sempre uma alma condoída que me passa o braço pelos ombros e diz tu assim não te aguentas, mulher. Depois saí e vi o gato em cima do murete. Foi a única coisa bonita que vi ontem e é por não saber desenhar que o escrevo aqui, gato num muro com mulher a vê-lo. O que me vale é o que escrevo e só por isso consigo sobreviver: hoje uma pessoa começou uma conversa comigo e subiam-lhe os gestos e que grandes eram mas de súbito percebi que embora continuasse gesticulante tinha ficado insonora. Entre nós passava um gato preto com a sua vaidade longilínea e um piscar cúmplice nos olhos de veludo.


Ivone Mendes da Silva, Dano e virtude, Língua Morta, 2017 (Julho), p. 132

sexta-feira, agosto 04, 2017

«Perder ou não perder (a frase)» - Ivone Mendes da Silva

[após a descontínua, a leitura contínua - esta manhã, alcançou-se a narrativa «n.º» 132]

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Como não quero ir trabalhar chinelante enfio os meus pés recém-chegados de um Verão à solta nuns sapatos mais aprumados. Um desespero com o calor que persiste e encosto-me à secretária e levanto um pé e depois passo para o outro e sento-me um pouco e torno a levantar-me. Continuo a aula e uma frase em pensamento atravessa pelo meio do que estou a dizer. Oh, caramba, agora? Deveria escrevê-la mas onde encontrar pretexto para parar e abrir um caderno e continuo com a dor nos pés [...] e a frase na cabeça. Empurro-a para segundo plano e hei-de retomá-la depois mas a frase tomada de uma estranha energia resiste um pouco. Pergunto-lhes se percebem bem o que estou a dizer. Que sim e eu afiro a qualidade do entendimento. Menos mal: ouviram o que eu disse e não a frase que empurrei para trás e que nada tinha que ver com o que lhes ensinava. Depois faz-se hora de sair. Penso que poderei escrever agora a frase mas quero sair. Beber água  e descalçar por uns minutos os sapatos. Puxo a frase para a frente e memorizo-a. Saio e vou fechar-me na casa de banho de pés descalços no mosaico fresco do chão. Respiro fundo. Subo as escadas e os pés a doerem de novo. Quando entro na sala dou-me conta de que perdi a frase. Tento puxá-la à memória mas desapareceu de vez. Sinto-me desertada.


Ivone Mendes da Silva, Dano e virtude, 2017 (Julho), Língua Morta, pp. 53, 54